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Clermont-Ferrand: por dentro de um dos maiores festivais de cinema do mundo

É importante dizer que o texto de hoje será um pouco diferente.

Indo em direção contrária à de outros artigos que realizei com um teor “jornalístico”, por assim dizer, dessa vez pretendo abordar o Festival de Cinema de Clermont Ferrand, na França, sob um aspecto pessoal.

Meu objetivo é tentar imprimir brevemente a visão de um jovem diretor em seu primeiro festival internacional com um filme, e mostrar como funciona a mecânica de um evento tão grande dedicado ao cinema.

Há mais de um ano, realizei um curta-metragem chamado “Ararat”. Levantado de forma completamente independente, o filme conta a história de dois irmãos armênios donos de uma confeitaria tradicional na capital de São Paulo.

Após passarmos por diversos festivais internacionais – incluindo a estreia no festival Kinoforum -, fomos convidados a exibir nosso filme no mercado de Clermont.

Enxergando a importância de termos a presença brasileira no festival, o Kinoforum, comandado pela produtora Zita Carvalhosa (que ainda terá uma entrevista especial aqui em breve), em parceria com a Spcine, realizaram a ação de levar jovens realizadores e realizadoras paulistas para expor seus filmes e, acima de tudo, conhecer este universo mercadológico dos festivais internacionais.

Cartão de visitas com uma versão alternativa do pôster de “Ararat”, produzido especialmente para o evento.

Como funciona um festival de cinema?

Antes de tudo, é relevante explicar como funciona a lógica de um evento cultural desse tipo.

Um festival de cinema nada mais é do que um grande encontro onde se exibem filmes (muitas vezes de todas as partes do mundo), realiza-se discussões e finalmente julgam-se filmes.

Esta é, claro, uma simplificação da experiência, mas o processo em si pode-se resumir da seguinte forma: meses antes, centenas de projetos são enviados para a curadoria do festival, estes passam pelo crivo de profissionais da área, que acabam selecionando uma pequena/média quantidade de filmes entre os que foram enviados, que são anunciados antes do evento.

Por fim, os filmes são exibidos e assistidos por membros do júri, profissionais da área, e é claro, pelo público. Dentro da programação, são destacados alguns títulos para as premiações, tanto a de melhor filme, quanto melhor filme internacional, melhor fotografia, direção, e por aí vai.

Sobre o festival de Clermont-Ferrand

No meio cinematográfico, é de conhecimento geral que para todo filme, com certeza existe um festival. Hoje em dia, contamos com todos os tipos de festivais, de todos os tamanhos e escopos diferentes.

É possível especular, até mesmo, que todo dia nasce um novo festival. Todavia, o festival de cinema de Clermont-Ferrand não surgiu hoje, ele existe desde 1979 na pequena cidade cujo nome é o mesmo do evento, localizada a aproximadamente três horas de Paris.

Durante duas semanas, a pacata cidade, que em dias normais é o lar de estudantes, aposentados e operários, torna-se uma espécie de templo dedicado ao cinema e à cultura para pessoas do mundo inteiro.

Este aspecto, inclusive, foi um dos mais curiosos para mim. Não são apenas os fãs de filmes que frequentam o festival, mas pessoas da cidade inteira,  crianças, adolescentes, idosos e curiosos em geral que estão passando pelo prédio de exibição.

Estrutura da cidade

A publicidade ao redor da cidade também não está de brincadeira. Desde a minha chegada, vi dezenas de pôsteres indicando e relembrando a existência do evento. Ao caminhar, também vi a mesma imagem circulando dentro de lojas e bares. Isto, ao meu ver, são apenas peças de um quebra-cabeça, que indicam juntas a imagem de uma cidade onde a cultura e o cinema fazem parte do hábito.

Pôster oficial do festival. Foto: Guto Gomes/Arquivo Pessoal

Logo de cara, o festival pode te assustar um pouco. É muita informação. O evento não se resume à apenas um prédio ou uma sala de cinema. Existe um circuito de lugares, interligados entre si, que formam o festival de Clermont-Ferrand.

Programação do festival

O núcleo principal onde ocorrem as exibições nas maiores salas, e na rua frente o mercado, é no prédio de espetáculos Maison de la culture, uma estrutura municipal enorme com várias salas de cinema e espaços comuns para a socialização.

Maison de la culture

A maior concentração de pessoas ocorre nesse lugar, onde o público escolhe quais filmes está interessado em ver dentro dos diversos programas oferecidos pelo evento (filmes franceses, internacionais, experimentais, etc). Além disso, também existem cinemas avulsos como o Cinema Le Rio, um pouco mais distante do centro, que também exibem os filmes da competição.

Cinema Le Rio. Foto: Guto Gomes/Arquivo Pessoal

Próximo ao Maison, fica um espaço onde é montado o mercado de Clermont-Ferrand. Nesse ambiente, são dispostos diversos estandes, cada um representando geralmente um país através de uma empresa/distribuidora/festival de cinema de diferentes partes do mundo.

Em uma estande temos um festival da Bulgária, o “In The Palace”, onde mãe e filha divulgam seu próprio evento de cinema, e mais alguns passos a frente temos o estande da Alemanha, Portugal, Espanha, Colômbia, e é claro, do Brasil.

Estes estandes estão presentes tanto para expor e dialogar sobre os filmes de sua nacionalidade que encontram-se na competição, mas também como um ato de representar seu país em um dos mercados internacionais mais quentes e estimulados de cinema.

Estar em Clermont é afirmar que tal país se preocupa com a produção de cinema e cultura e, consequentemente, valoriza a imagem internacional que reverbera através desses filmes.

Em 2023, passada a pandemia que obrigou o evento a ser realizado virtualmente nos anos anteriores, foi de interesse mútuo da associação Kinoforum e da Spcine que o Brasil marcasse presença em Clermont, uma vez que quatro filmes estavam em competição oficial: “Big Bang”, de Carlos Segundo, “Takanakuy”, de Vokos, “Escasso”, de Gabriela Gaia Meirelles e Clara Anastácia e “Ainda Restarão Robôs nas Ruas do Interior Profundo”, de Guilherme Xavier Ribeiro.

Além disto, fomos convidados para o Market Picks, onde realizamos uma exibição especial de mercado para cinco filmes paulistas: o filme de Guilherme, já mencionado, “Tapuia”, de Kay Sara e Begê Muniz, “Coleção Antirracista”, 1º episódio da minissérie de Val Gomes, “Do Lado de Cá”, de Davi V. S. Silva, Nicole N. Neves, Guilherme da C. Silva, Yasmin M. Cunha, Felipe D. C. do Nascimento e Ronaldo S. dos Santos e “Ararat”, escrito e dirigido por mim.

O estande brasileiro no festival de Clermond-Ferrand

Desta forma, foi montado nosso estande brasileiro, onde recebemos todo tipo de profissional da área, de diversas partes do mundo, interessados em conversar sobre nossa produção nacional/local em São Paulo.

Em nossa embaixada nacional, contamos com Zita Carvalhosa, Anne Fryszman e Denise Carvalho, que foram responsáveis não apenas por erguer a presença brasileira no evento, mas também por nos instruir a como navegar da melhor maneira dentro do evento.

Da esquerda para a direita: Anne Fryszman, Denise Jancar, Zita Carvalhosa, Vokos, Pedro Santiago, Gabriela Gaia Meirelles, Val Gomes, Kay Sara e Guto Gomes. Foto: Guto Gomes/Arquivo Pessoal

Muitas vezes, mesmo antes da exibição de Ararat, tive a chance de conversar com realizadores e distribuidores sobre o tema do meu filme, e levantar a discussão sobre o Genocídio Armênio.

Não muito diferente de minha experiência trazendo o assunto para meus amigos em São Paulo, muitos só ouviram falar no assunto superficialmente, sem conhecer o impacto e a proporção da diáspora armênia ao redor do mundo até hoje.

Conheci um realizador italiano, que não apenas não conhecia, como quase tive que consolar quando contei que meus bisavôs fugiram da fila do genocídio em 1915.

Antes das relações profissionais que fiz em Clermont, tenho em meu repertório as interações pessoais que fiz com pessoas do festival, tendo a oportunidade de levar a mensagem do filme, que tanto batalhamos para construir, tanto para a comunidade internacional quanto para os próprios realizadores brasileiros.

Como realizador, tive reuniões tanto de rodadas de negócios com distribuidoras internacionais, quanto com apresentação de filme para festivais importantes, como o de Cannes, Berlim e Locarno.

Por serem altamente concorridos, estes representantes dos festivais são bastante disputados. Muitas vezes cria-se uma enorme fila de esperançosos realizadores fora da sala, torcendo para que tenham uma janela de oportunidade. Eu mesmo consegui conversar com a representante da Quinzena dos Realizadores de Cannes, mas não com a sessão específica de curtas, pois uma vez que conseguimos entrar na sala, eles evaporaram.

Além disso, mesmo para quem dirige filmes, o evento é uma ótima oportunidade de aumentar o repertório, uma vez que podemos entrar em todas sessões gratuitamente. Naturalmente, entre reuniões e coquetéis, tentei sempre assistir a filmes da competição nacional e internacional.

A sessão especial

Nossa sessão especial ocorreu dia dois de fevereiro, em uma sala próxima ao centro de exibição de Maison. Estavam quase todos os realizadores responsáveis pelos filmes exibidos, e pudemos debater um pouco sobre cada um. 

Creio que os projetos trazem temas completamente diferentes entre si, mas que, em união, solidificam um pouco a história, experiência e dia a dia de diferentes histórias dentro da cidade de São Paulo.

Quando o assunto é a leitura de cada um, eu levo sempre em consideração a fala de Oscar Wilde: “toda crítica é uma autobiografia”. Não obstante, creio que essa frase se estenda à toda e qualquer reação geral que o público expressa quando está assistindo a um filme, e foi muito curioso ver a reverberação que nossos filmes tiveram em um variado grupo de pessoas.

Alguns parecem ter se assustado, outros ficaram curiosos, com os olhos fixos enquanto falávamos sobre nossos temas. Na saída recebemos pessoas, e um garoto mais novo veio me fazer perguntas sobre a produção do filme.

Me faltam palavras para imprimir de fato como esse festival reverberou dentro de mim, mas serei sucinto em dizer que a palavra é inspiração. Em adição de tudo que aprendi sobre o processo de exibição e venda de filmes em um mercado de cinema internacional, sinto que a experiência é, por si só, uma chama de energia para todo realizador ou realizadora que vive ou pretende trabalhar no mercado de cinema e cultura de uma forma geral.

Só quem tem ou já teve um projeto independente em mãos conhece o duro caminho percorrido para sustentar uma visão artística em meio a todos os percalços de produção, equipe e capital até que se chegue em um resultado final. Desta forma, é de bom tom saber, agora pessoalmente, que existe sim espaço e interesse no cinema brasileiro ao redor do mundo.

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