Com menos de três meses desde o colapso da exchange FTX, o mercado de criptomoedas se depara com um novo tipo de crise. Dessa vez, no mercado de staking de criptomoedas, que pode ser proibido nos Estados Unidos.
Tudo começou na semana passada, em 8 de fevereiro, com uma série de tuítes de Brian Armstrong, CEO da Coinbase. Nas mensagens, Armstrong afirmou ter “ouvido falar” que a SEC planejava aplicar sanções contra empresas que faziam staking de criptomoedas nos EUA.
“Estamos ouvindo rumores de que a SEC gostaria de se livrar do staking de criptomoedas nos EUA para clientes de varejo. Espero que não seja esse o caso, pois acredito que seria um caminho terrível para os EUA se isso acontecesse”, disse o CEO
Menos de 48 horas depois, no entanto, o rumor se tornou verdade quando a SEC aplicou uma multa superior a US$ 160 milhões contra outra exchange, a Kraken, por suposta violação da lei de valores mobiliários. A violação? Oferecer staking de criptomoedas, que a SEC entende como sendo um investimento e, portanto, requer autorização da autarquia.
No entanto, o que levou a toda essa situação? Qual o embasamento que a SEC tem para essa proibição? E o que isso pode trazer de risco para o mercado? São essas três perguntas que vamos entender no texto dessa semana, que explica os seguintes pontos:
- o que é staking?;
- teste de Howey;
- a ação da SEC.
O que é staking?
A palavra Stake vem do inglês e significa “aposta”, sendo muito usada nos jogos de pôquer. Há, por exemplo, as modalidades de “high stakes”, que são apostas altas nesse jogo.
Em criptomoedas, o staking significa algo parecido com uma aposta, só que com resultados mais certeiros. O staking é uma forma dos usuários colocarem suas criptomoedas para trabalhar, gerando renda passiva através de juros.
No staking, os usuários deixam uma determinada quantidade de criptomoedas “bloqueadas” na rede. Esse bloqueio garante coisas como a segurança da rede e a validação dos blocos da blockchain. Em troca desse bloqueio, a rede paga uma remuneração variável para os validadores da rede
Trata-se de uma modalidade exclusiva de criptomoedas que utilizam o algoritmo de consenso conhecido como Prova de Participação, ou PoS na sigla em inglês. Redes como o Bitcoin (BTC), que utilizam Prova de Trabalho (PoW), não possuem staking, mas as seguintes redes possuem:
- Ethereum;
- Cardano;
- Solana;
- Tezos;
- Avalanche.
Por causa do seu alto risco, os protocolos de staking tendem a pagar rendimentos bastante atrativos, calculados de acordo com critérios de cada rede. Sites como o Staking Rewards trazem uma média de quanto os protocolos pagam para os usuários que deixam suas criptomoedas.
Mas é justamente o fato de pagarem juros aos usuários que colocou esses protocolos na mira da SEC. De acordo com a autarquia, as criptomoedas de staking se enquadram no teste de Howey e, portanto, são títulos que devem estar sob a alçada da SEC. Mas o que é esse teste e como ele define isso?
O teste de Howey
Este teste é uma ferramenta muito conhecida e utilizada pela SEC para definir se um ativo é um título ou valor mobiliário. Dessa forma, o teste de Howey define quais ativos estão dentro ou fora da jurisdição da autarquia americana.
O teste de Howey surgiu em 1946, durante um caso de investimento julgado pela Suprema Corte dos EUA naquele ano. Este caso envolveu uma empresa chamada WJ Howey Company (que deu nome ao teste) e seus investidores.
Na época, a Howey vendeu lotes de pomares de frutas cítricas para investidores externos. Howey e os investidores chegaram a um acordo pelo qual os compradores arrendariam imediatamente os pomares de volta para Howey, que colheria e venderia os produtos cítricos resultantes. Em troca, a empresa pagaria um percentual sobre o valor do arrendamento.
Só que a SEC afirmou que o contrato de venda e arrendamento dos pomares era uma promessa de investimento e, portanto, estava sob a sua alçada. Howey, por sua vez, contestou a alegação, levando o caso para a Suprema Corte.
No julgamento, a Suprema Corte deu parecer favorável para a SEC, afirmando que os pomares constituíam um contrato de investimento e, portanto, um título. Para justificar sua posição, a Corte introduziu quatro critérios que, posteriormente, ficaram conhecidos como o teste de Howey. São eles:
- Deve ser um investimento de dinheiro, ou seja, os usuários aplicam um valor para investir no produto;
- Com expectativa de lucro, oferecendo um retorno aos investidores;
- Em uma empresa comum, uma companhia que está por trás do título ou investimento;
- Com o lucro a ser gerado por um terceiro, que, no caso de 1946, era a WJ Howey Company e seu trabalho nos pomares.
Os quatro critérios viraram um padrão para a indústria de investimentos. Sempre que um produto atende aos quatro critérios, a SEC o classifica como um título ou valor mobiliário, obrigando seu emissor a ter registro com a autarquia.
Caso o emissor não tenha esse registro, a oferta não possui autorização da SEC, que geralmente suspende a emissão de novos títulos e do serviço.
A ação da SEC
Diante da explicação sobre o que são o staking e o teste de Howey, a SEC começou a olhar os protocolos de staking. Na visão da autarquia, esses protocolos se enquadram nos critérios estabelecidos em 1946.
Os protocolos de staking de fato oferecem rendimentos, o que os enquadra no critério de expectativa de lucro. Além disso, a SEC argumenta que os investidores devem colocar dinheiro para fazer o staking, atendendo o primeiro critério da lista. E o critério de lucro por terceiros diz respeito à atividade de staking como um todo.
O único critério mais nebuloso é o de empresa comum, já que os protocolos de staking são entidades descentralizadas, e não empresas. Portanto, não se enquadram na versão da SEC para o teste de Howey.
Além disso, Peter Grawal, advogado da Coinbase, maior exchange dos EUA (que oferece serviços de staking), também questionou os demais critérios. No caso dos rendimentos, Grawal afirmou que os juros do staking não são proveniente de rendimentos, mas sim de um trabalho (validar os blocos da rede).
Além disso, os clientes não investem dinheiro na Coinbase, pois o staking é uma atividade descentralizada que dá a eles o controle total de suas criptomoedas. O fato da descentralização também faz, na visão de Grawal, o staking não atender ao critério empresarial.
Em suma, o staking é uma atividade muito nova sobre a qual os reguladores ainda não têm uma ampla compreensão. Por isso, essa será uma árdua disputa tanto para empresas quanto para os usuários do staking como um todo.